A senhora R. é a primeira mulher
com Alzheimer que entrevisto. Eu estava ansiosa pra conhecê-la.
Talvez por isso sua entrevista
tenha mexido tanto com todos os meus sentidos. Todas as entrevistas até
aqui foram muito tocantes, mas saí da casa da senhora R ainda mais sensível aos sons, às cores
da rua... Naquele dia ventava um “vento de chuva”, e eu sentia em cada pedacinho da pele esse
vento... peguei metrô, as pessoas passavam correndo ao meu lado e eu em câmera
lenta... tudo maior, ampliado... ouvia quase todas as vozes, achava bonito os
timbres... via as cores...
Voltando à a casa da senhora R: enquanto eu conversava na sala
com seu marido, ela sumiu pra cozinha... eu conversava com o senhor A com o
ouvido na cozinha: barulho de panelas, torneira, água... vai fazer um café,
pensei.
Dali um minuto ela aparece e pergunta pro marido: “Onde está
o fósforo?”.
E ele: “Pra que fósforo?”.
Eles se olham alguns segundos, um silêncio esquisito...
Então ela, meio que “lembrando” pergunta: “ah é, é só fazer
assim (aqui faz um gesto, 'aperta' um botão imaginário) que liga?”. Então entendo: fogão elétrico.
O senhor A se levanta e vai até a cozinha, dá uma força...
volta e recomeçamos... ele fala sobre a doença. Minutos depois ela volta com
uma xícara pintadinha em um pires e me entrega. O marido pede também uma
xícara e ela pede pra ele ir até a cozinha com ela... Ouço o que aconteceu: ela
só conseguiu “salvar” um pouquinho de café e me trouxe, o resto ela estragou
porque colocou numa garrafa cheia de água.
Há em tudo um grande esforço para que eu não perceba o que
está errado. Esforço inútil principalmente porque o marido (não por maldade)
volta da cozinha e me conta o que houve, na frente dela.
A senhora R. é suave, doce. Foi sempre uma dona de casa
exemplar e está ali se esforçando para oferecer uma xícara de café para a
visita. Esse esforço me faz ter vontade de abraçá-la, mas meu abraço se resume
a agradecer o café, comentar como está bom. Ela sorri.
Os pais da senhora R. eram italianos. O marido insiste para
que ela cante uma música em italiano, que ela ainda se lembrava, ela
desconversa... minutos depois, enquanto o marido me conta outra coisa, ela
começa a cantar... entre uma palavra e outra da música que quase não entendo, um
riso bom.
Pintava quadros quando moça, vi dois. Um deles é uma
paisagem com uma mulher de costas, de camisa branca, pequena e delicada, sem
mostrar o rosto... pequenina e sozinha a mulher do quadro.
Acho que a senhora R. nunca vai falecer... vai apagando,
apagando, como um quadro antigo... até sumir um dia.